Numa conversa de café depois do verão, a Ana mostrou vontade em fazer uma pequena viagem de bicicleta em autonomia, aproveitando um fim-de-semana mais longo e o nosso clima, cada vez menos chuvoso e menos frio.
Com o feriado de 1 de Novembro a calhar numa terça-feira, estava decidida a data, que nos proporcionaria uma viagem de cicloturismo de 4 dias pelo nosso bonito Portugal.
Faltava decidir o local, mas como ela não conhecia a Ecopista do Dão, entre Viseu e Santa Comba Dão, um dos lugares mais bonitos e agradáveis para pedalar em Portugal, apontámos o mapa para essa região. Com 4 dias para preencher, acrescentámos a Ecopista do Vouga que acompanha o rio desse nome, entre Sernada do Vouga e Viseu, numa zona montanhosa, onde o caminho da antiga linha ferroviária serpenteia pelas encostas, fura por túneis e salta por pontes os declives, percorrendo todo o percurso numa fácil e quase plana progressão.
O planeamento da viagem resumiu-se a uma breve escolha de percursos por estradas nacionais e municipais com pouco movimento, que fizessem a ligação às ecopistas. O alojamento ficava em aberto e seria decidido no momento. Levávamos equipamento de campismo e sabíamos onde havia Pousadas da Juventude.
Primeiro Dia
No Sábado, dia 29 de Outubro, saímos de Lisboa às 7h39, no comboio InterCidades em direção a Aveiro. Duas horas depois já estávamos a tomar um segundo pequeno almoço na Avenida Lourenço Peixinho. Da esplanada apreciávamos um desfile tímido de idosos a pedalar nas suas bibicletas, carregando sacos da passagem pelo mercado. De certeza que estes seniores vão poucas vezes à farmácia buscar medicamentos comparticipados e são mais felizes por continuarem a usar a bicicleta. Ganhamos todos.
Mesmo assim, Aveiro também sofre do excesso de carros e nos primeiros quilómetros sente-se o ar mais pesado das décadas de planeamento urbano desperdiçadas em (i)mobilidade exclusivamente automóvel. Mas não foi preciso pedalar muito em direção ao interior, mais rural, para começar a apreciar o silêncio e ar puro das estradas quase sem carros.
O nosso objectivo era descobrir o início da Ecopista do Vouga, perto de Sernada do Vouga. Sabíamos que apenas uma pequena parte desta ecopista está pavimentada com piso betuminoso – 11 kms dum confortável pedalar. Os restantes 67 kms são em piso de terra, gravilha e pedras. Como é habitual, estas ecopistas não têm qualquer sinalização da sua localização a partir da estrada – não vão as pessoas começar a usá-las e deixarem de depender tanto do negócio dos carros, dos combustíveis e das farmácias… Mas graças à curiosidade, à sorte e à tecnologia dos mapas dos smartphones, lá conseguimos encontrar o início da “ecopista pavimentada”, junto à Foz do Rio Mau.
A partir daí, parece que entramos num maravilhoso mundo novo. Quase como um “portal” para outra dimensão, como naqueles filmes de ficção, onde depois duma passagem escondida, descobrimos um paraíso a transbordar de vida e beleza, poupada dos excessos da (in)civilização.
Parámos para almoçar na Paradela, onde a antiga estação foi convertida num simpático espaço com restaurante, esplanada e outros serviços de apoio à ecopista. Restabelecidos com uma bela salada, continuámos a pedalar, inebriados pela beleza à nossa volta e com a satisfação de estarmos a apreciar isto tudo e a percorrer tamanhas distâncias, sem estragar o objecto da nossa contemplação. De manhã estávamos em Lisboa e uma horas depois já ali nos encontrávamos, graças à eficiência e polivalência que só a bicicleta permite.
Parámos novamente, desta vez para falar com uma senhora que caminhava, à procura de cogumelos. Falámos do seu interesse por estes fungos, partilhou receitas e contou-nos um pouco da sua vida profissional e familiar.
Cedrim marca o fim do betuminoso e impunha-se decisão de seguir pela estrada nacional ou continuar pela ecopista? Optámos por continuar na ecopista, pois o piso em terra não era demasiado desconfortável e íamos descontraidamente devagar. Mas de vez em quando, para evitar troços mais acidentados, fazíamo-nos à EN16, confortável e quase sem tráfego automóvel, mesmo ali ao lado.
Neste primeiro dia continuámos até São Pedro do Sul. Não tínhamos nada marcado, mas sabíamos que havia uma Pousada da Juventude. E a 12€ por pessoa, num quarto com WC e pequeno almoço incluído, a tenda que trazia nos alforges lá iria continuar guardada nessa primeira noite.
Segundo Dia
No segundo dia continuámos a seguir a Ecopista do Vouga, em direção a Viseu, com as suas muitas pontes e túneis. Depois dum primeiro dia de cicloturismo perfeito, continuávamos na rotação máxima da satisfação, sem sinais de abrandamento. Excepto nas constantes paragens para tirar fotografias e contemplar a paisagem. De vez em quando fazíamos um desvio para o suave piso da estrada nacional, praticamente sem carros, quando o piso da ecopista apresentava demasiadas irregularidades.
Já às portas de Viseu, perdemos o rasto da ecopista e seguimos a recomendação dum ciclista que encontrámos no caminho, de seguir pela estrada nacional (N16). Com duas vias de trânsito em cada sentido, podíamos circular a par descontraidamente pela via da direita.
Almoçámos no centro de Viseu e abastecemos de comida num mini-mercado de rua, a pensar na ceia para o final do dia. O plano era fazermo-nos à Ecopista do Dão, encontrar um local para montar a tenda a meio do caminho, antes do sol se esconder, e comermos as iguarias adquiridas, acompanhado por uma garrafa de vinho tinto que trazíamos nos alforges, do jantar da noite anterior.
Escusado será repetir que o início da Ecopista do Dão não tem qualquer placa que incentive as pessoas a descobri-la. Tem 49 kms e liga Viseu a Santa Comba Dão, através do antigo caminho ferroviário deste nome. Todo o percurso está confortavelmente betuminado, com a particularidade de cada município ser demarcado por uma cor. Em Viseu o tapete é Vermelho, passando a Verde no concelho de Tondela e acabando em Azul no município de Santa Comba Dão. É considerada a melhor ecopista do país e rapidamente se percebe porquê, como as imagens comprovam.
Quando planeamos uma noite de “campismo selvagem” instala-se uma adrenalina em forma de ligeira ansiedade, com a incerteza de encontrar um bom local, na hora certa. Vamos pedalando pela ecopista, mas já começamos a olhar possíveis saídas que possam culminar nesse local. Não consigo explicar bem porquê, mas a verdade é que nestas situações acho sempre que tudo vai correr bem, o que mais uma vez acabou por se confirmar. Por volta do km 20, decidimos seguir um dos caminhos agrícolas que dão acesso a campos de cultivo. Rapidamente encontrámos uma clareira isolada e perfeita para montar a tenda, aproveitando ainda a luz do final da tarde para jantarmos.
Terceiro Dia
Começar o dia a pedalar na confortável Ecopista do Dão, a apreciar as paisagens naturais e os campos agrícolas, sem o desconforto gerado pelos automóveis, é um grande e longo “momento zen”, que já ia no seu terceiro dia consecutivo.
Procurámos a primeira localidade onde pudéssemos tomar o pequeno-almoço. Perguntámos a um senhor que cuidava do seu jardim e que nos recomendou Canas de Santa Maria, 2 kms mais à frente. Típico café, igual a tantos outros, com uma TV ligada nos programas da manhã, sempre a sortear carros, acompanhados de comprimidos para compensar os efeitos do sedentarismo e notícias chocantes para prender os telespectadores em frente ao ecrã. Na rua, as crianças do jardim infantil desfilavam com as vestes do Dia das Bruxas, assustando pouco e cativando mais.
Voltámos à Ecopista. Encontramos um pastor com o seu rebanho de ovelhas e os seus dois enormes e simpáticos cães, que logo nos vieram exigir “festas”. Passámos por uma antiga igreja românica, um dos raros edificados sinalizados no percurso.
Mais 20 kms a pedalar por estas paisagens. O Rio Dão começava a chegar mais perto da Ecopista. A determinada altura, somos atraídos por uma paisagem verdejante e extensa. Saímos da ecopista e descemos por um caminho de terra. Por onde o rio já passou em tempos, com um caudal mais elevado, existe agora um extenso tapete relvado, verde e perfeito, sem ninguém para o aparar ou regar. Um imenso anfiteatro que parece um cenário dum filme jurássico. Ficámos ali a contemplar aquele quadro, que ainda hoje nos conforta, só de nele pensar.
Antes de chegarmos ao fim da ecopista, decidimos cortar à direita por um dos caminhos de terra, explorando uma alternativa para chegar a Santa Comba Dão, sem ter que fazer a ponte por onde passa a IP2, com um perfil de “quase auto-estrada”. Em vez duma saída fácil, encontrámos um caminho acidentado, com uma bela subidas dignas dum percurso de BTT. Mas nada que não encarássemos com um espírito aventureiro e positivo. Sabíamos que eram só uns poucos kms até encontrarmos uma estrada asfaltada.
Almoçámos em Santa Comba Dão e apontámos o GPS do smartphone para Coimbra, seguindo por estradas que acompanham o Rio Mondego. Tirando pequenos troços que passam pela IP3 (que deveriam ser alvo da criação de alternativas), o trajeto é agradável, com estradas municipais sem carros e sem grandes declives, junto às margens do Mondego, seguido duma parte pela EN2 e depois pela EN110, que serpenteia pelo vale em direção a Coimbra.
Chegámos a Coimbra já de noite. A hora mudou e roubou-nos uma hora ao final da tarde. Felizmente as nossas bicicletas têm boas luzes, alimentadas por dínamos de cubo. Mais uma vez o plano era encontrar a Pousada da Juventude. Mal sabíamos que ficava no cimo de várias subidas. Depois de três dias “zen”, lá tivemos que levar com o habitual excesso de carros que estragam as nossas cidades. Apesar de lhe ter custado um pouco, ainda para mais ao final de 3 dias a pedalar e já com 80 kms nas pernas, a um bom ritmo naquele dia, a Ana superou sozinha aqueles últimos 4 kms, sempre a subir.
Bicicletas guardadas no interior de mais uma Pousada da Juventude, com apenas 25% da lotação, tomámos um duche e fomos jantar num restaurante na Praça da República.
Quarto Dia
Um dia tranquilo, onde aproveitámos a manhã para explorar de bicicleta o polo universitário de Coimbra, o centro histórico e a renovada frente ribeirinha. Poucas alternativas para almoçar junto ao rio, mas gostámos da esplanada do Restaurante Itália, bem integrado no parque com as suas generosas árvores e uma bela vista para o Rio Mondego, a aproveitar ao máximo aquele verão de Outono, no primeiro dia de Novembro.
Durante o almoço, usámos o smartphone para comprar os bilhetes do InterCidades que nos levaria às 15 horas e picos confortavelmente de regresso a Lisboa.
Estava concluída uma viagem de 4 dias, sem reservas de acomodações nem planos rigorosos, mas onde tudo correu na perfeição do improviso. Viajar é fácil e em Portugal é uma brincadeira de crianças.
Mesmo assim, temos um longo caminho a percorrer, para nos aproximarmos dos níveis de turismo activo de outros países europeus, onde se investe muito mais em redes de vias cicláveis seguras e sinalização que incentive o seu uso, por parte da população residente e turistas. São investimentos com elevados níveis de retorno, pois conseguem combater de forma eficiente os graves problemas das alterações climáticas e da saúde pública, bem como dinamizar o turismo alternativo e as economias locais.
Percursos registados no Strava:
Dia 1) Aveiro – S. Pedro do Sul, pela Ecopista do Vouga
Dia 2) São Pedro do Sul – Viseu, Ecopista do Vouga
Dia 2) Ecopista do Dão, Parte 1
Dia 3) Ecopista do Dão – Santa Comba Dão
Dia 3) Santa Comba Dão – Coimbra
Alguns links úteis:
- http://www.ecovias.pt/ – Roteiros turísticos digitais com percursos para percorrer na sua bicicleta. Incluem mapas detalhados, informação técnica e turística, fotos, trilhos GPS e muito mais.
- http://www.ciclovia.pt/ – Rede actualizada das actuais e futuras Ciclovias, Ecovias, Ecopistas e Percursos Cicloturísticos em Portugal, com bastante informação sobre cada uma.
- http://euroveloportugal.com/ – percurso português da EuroVelo 1- Rota da Costa Atlântica, pertencente à rede Europeia de Ciclovias que inclui actualmente 15 rotas cicláveis de longa distância que cruzam o continente Europeu.
Muita bom…mais uma ideia para fazer em família. Partilho contigo, como sabes, da percepção da infeliz mania de curar problemas de saúde causados pelo sedentarismo em vez de os evitar com a actividade física da maioria da população….gostei de ver a tua insistência neste ponto! 😉 Vócesses são os máiores! Abraço e beijo.
Muito bom! E as fotos põem mesmo uma pessoa em pulgas para ir. 🙂