Quero ser “normal”?

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Quando era criança o meu pai levava-me para a creche de bicicleta. Aos 3 anos ganhei uma bicicleta e aos 5 já a conduzia sozinho para a escola, com o meu pai ao lado. Às vezes também íamos a pé. E quando nos deslocávamos para destinos mais longe, utilizávamos os transportes públicos. Depois da escola, veio a universidade e o primeiro trabalho. Sempre a pedalar. Excepcionalmente podia usar o metro, o comboio, o autocarro, um táxi, ou a boleia de alguém, se tinha que transportar objectos muito volumosos ou viajar em grupo.

Sempre tive uma boa bicicleta, daquelas que deslizam bem, sem ruídos estranhos, confortável e rápida, com boas luzes para ver e ser visto, bons travões, guarda-lamas para não me sujar a roupa quando a estrada está molhada, uma grelha traseira onde prendo um ou dois alforges impermeáveis para transportar o que preciso. Por serem boas, nunca me davam problemas. Apesar duma utilização diária, só de 2 em 2 anos é que tinha de afinar ou trocar qualquer coisa. Mas tudo muito simples. Também investia em boa roupa, confortável e eficiente para me aquecer no inverno, impermeável e respirável para quando chove. Enfim, opções que tornavam tudo mais fácil, divertido e agradável pedalar em qualquer estação do ano.

Mas sempre achei estranho os outros me chamarem de “fanático”, “entusiasta” ou até “fundamentalista” da bicicleta. Para mim a bicicleta sempre foi apenas “mais um” meio de transporte. Ainda para mais quando essas pessoas só andavam de carro para todo o lado, mesmo em deslocações curtas e quase sempre sozinhas. Não percebia como podia ser eu o “fundamentalista”, quando na realidade usava várias opções de mobilidade, todas elas mais sustentáveis e amigas das pessoas e do planeta.

Mas devia haver algo de errado comigo, pois sempre que defendia que devia haver melhores condições, mais prioridade e investimento para andar de bicicleta em segurança, lá vinham dizer que não podia ser, que andar de bicicleta na cidade é só para malucos, as 7 colinas, não havia dinheiro, não podiam atrapalhar o trânsito dos carros, que eu não estava a ver bem a coisa, etc., etc…

Tanto foi, que acreditei que devia mesmo haver algum problema comigo. Afinal, todos os meus conhecidos andavam de carro e só eu é que andava de bicicleta! Não podia ser “normal”!

Então decidi começar a andar de carro.

Surgiu o primeiro obstáculo – não tinha carta de condução! Desde pequeno que sempre andei de bicicleta e com os anos de experiência fui aprendendo todas as regras de trânsito e as melhores técnicas para circular em segurança. Também não percebia a validade de ter uma carta de condução, se a generalidade dos condutores não cumpre as regra de segurança e de boa convivência (velocidade excessiva, estacionamento ilegal, não parar nas passadeiras, sinais vermelhos, uso do telemóvel, distâncias de segurança dos ciclistas,…). Mas mesmo com estas dúvidas, inscrevi-me numa escola de condução, onde tive de largar umas boas centenas de euros e dedicar vários dias e meses. Pelo menos esclareci a dúvida sobre a “origem” do incumprimento geral das regras de segurança.

Depois de quase um ano, surgiu o segundo obstáculo: não tinha carro! Não podia ser um qualquer carro, disseram-me. Tinha que ser um bom e distinto. Tive que pedir um empréstimo e gastar dezenas de milhares de euros, aos quais acresceram muitos outros milhares todos os anos, para sustentar a utilização deste dispendioso veículo. Deixei de ter dinheiro para as férias, programas familiares, saídas com amigos, etc… Mas estava determinado a ser uma pessoa “normal”, custe o que custasse, mesmo que implicasse trabalhar mais 4 horas por dia. Antes de ter carro não ganhava muito, mas tinha menos despesas e mais tempo para viver.

Um ano depois da decisão de passar a ser considerado uma pessoa “normal” – com carro próprio – comecei a utilizá-lo. Rapidamente me apercebi do stress dos primeiros meses de condução, dos constantes congestionamentos, da agressividade das pessoas no trânsito que elas mesmo provocam, da sensação de ir sozinho e fechado numa lata de metal que ocupa o tamanho dum quarto pequeno e que depois incomoda e rouba espaço ao estacionar em qualquer lado. Sentia-me culpado do ruído e do fumo que provocava, do perigo que representava para crianças e idosos. O meu dinheiro, que antes gastava na economia local, passou a ir para fora do meu país, através da aquisição do veículo e dos combustíveis. Comecei a engordar, a sentir-me menos activo e com menos energia, mais cansado, a adoecer mais vezes e as visitas à farmácia e ao hospital também surgiram com frequência.

Fiquei a pensar na “normalidade” com que as pessoas enfrentam todo este processo dispendioso, moroso e de resultados duvidosos, para começar a conduzir… Nas chatices, stresses, lentidão e inconvenientes que implica possuir e utilizar um carro para deslocações nos centros urbanos. Nas consequências devastadoras duma sociedade em que “todos” desejam usar o seu carro particular no dia-a-dia.

Em contraste com as desculpas que inventam para não utilizarem a bicicleta. Claro que implica investimento: uma boa bicicleta, bom equipamento, um tempo de adaptação e, eventualmente, boas lições de condução com pessoas experientes que realmente zelam pelo interesse comum e não pela necessidade de passar um exame duvidoso. Mas nada que se compare ao rol de provações da opção carro.

Optei por voltar à minha normalidade multi-modal, com a bicicleta a ocupar um lugar de destaque e com a confirmação de que não são as maiorias que definem o que está certo ou errado, o que é bom ou mau.

Libertei a cidade do espaço do meu carro para quem “realmente” precisa. Deixei de fazer parte do problema, para fazer parte da solução. E recuperei a felicidade de começar e terminar o dia a ver o mundo da perspectiva privilegiada de quem pedala.

D.P.

Lisboa, 6 de Fevereiro, do ano 2040 (dois mil e quarenta)

 

 

 

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