Os utilizadores de bicicleta são moralmente incumpridores?

2012-12-04 07.21.07

A maioria das pessoas já terá reparado no facto de a maioria dos ciclistas urbanos não cumprir sempre as regras legais de trânsito. É habitual observar-se utilizadores de bicicleta a transgredir sinais vermelhos, a percorrer ruas em sentido proibido, ou a realizar viragens não permitidas. Diversos utilizadores de outros modos de transporte ficam indignados com este comportamento. Não existe ciclista infrator que não tenha já ouvido algum protesto, gestual, verbal ou na forma de buzinadela. O descontentamento latente é ainda mais vasto; a maioria dos cidadãos descontentes com aquele tipo de actos prefere não se manifestar, guardando o sentimento para si próprio. Ficam assim os ciclistas urbanos mal vistos entre boa parte das pessoas. São por vezes generalizadamente conotados como pessoas pouco respeitadoras das regras da sociedade, fundamentalistas do ambiente, anarquistas ou outras classificações de estilo. Será assim?

Para fazer uma avaliação moral do não cumprimento de algumas regras legais por parte dos ciclistas é útil dar um passo atrás e ter em conta a razão fundamental da existência de regras de trânsito: a segurança. Se recuarmos apenas duas gerações, verificamos que à altura praticamente não existiam semáforos. Recuando mais um pouco, não havia regras de trânsito. A inexistência dessas regras não se devia necessariamente ao facto de nos encontrarmos num estado civilizacional menos avançado, mas simplesmente à não necessidade delas. Os acidentes graves nas deslocações das pessoas não aconteciam. Choques entre carroças, cavalos, pessoas, ou bicicletas, eram raros e, quando ocorriam, causavam normalmente não mais do que uns beliscões.

Existem dois fatores na mobilidade que colocam em risco grave a segurança: a massa e a velocidade. Com o advento do automóvel, e das mortes e outros acidentes graves que a sua utilização despoletou, foram criadas e proliferadas as regras de trânsito. Efetivamente foi o surgimento de veículos pesados e rápidos que trouxe a necessidade de regular o movimento das pessoas. As regras quanto à forma como nos deveríamos deslocar tornaram-se assim banais ao fim de poucas décadas.

A moral vigente relativamente ao respeito pelas regras de trânsito é diferente conforme o modo de deslocação que se utiliza. É por exemplo moralmente inaceitável para a maioria dos cidadãos ver um automóvel a ultrapassar um sinal vermelho, mesmo em situações em que o risco seja aparentemente inexistente. Aos peões não se aplica a mesma moral. É aceitável, para praticamente qualquer um, ver o peão atravessar com o sinal vermelho, desde que não existam veículos na estrada em vias de passar por ali. Ainda que esta diferenciação de julgamento moral ocorra quase inconscientemente, as razões da sua existência são simples. Se for imprudente, um peão dificilmente causará um dado grave a alguém, à exceção dele próprio. Não só tem um incentivo extremamente forte para ser prudente (egoisticamente falando) a fim de preservar a sua própria vida, como no caso de ser imprudente isso acarreta um risco menor para terceiros.

A aplicação à bicicleta de princípio moral análogo parece ser evidente. Uma bicicleta e o seu passageiro têm uma massa cerca de 20 vezes inferior à de um automóvel. Por outro lado a bicicleta anda normalmente a velocidade, digamos, 3 vezes inferior à de um automóvel. Nestas circunstâncias, a energia do automóvel em movimento é cerca de 200 vezes superior à da bicicleta mais o seu passageiro. Os riscos de danos graves em caso de acidente não devem portanto ser colocadas em patamares equivalentes. Legalmente, não é permitido a um ciclista passar um vermelho. Moralmente, pode ser aceitável.

É curioso a este respeito verificar o que acontece em países onde a bicicleta é encarada massivamente como um modo de transporte utilitário: aquilo que é legalmente proibido em Portugal é, em muitos casos, perfeitamente legal noutros sítios. Em países como a Holanda, a Dinamarca, a Suécia, a Alemanha, a França e outros, é permitido, em diversas circunstâncias, passar sinais vermelhos, atravessar ruas em sentido inverso ou realizar viragens onde tal não é permitido ao automóvel. Também é comum nestes países ver ciclistas a infringir algumas regras de trânsito, sem que isso seja especialmente encarado pelos concidadãos como algo reprovável em todas as circunstâncias.

Nada disto invalida que existam alguns ciclistas a ter comportamentos efetivamente reprováveis na forma como interpretam e aplicam as regras de trânsito. E que, tal como os restantes cidadãos, não sejam imunes a regras com conta, peso e medida. Mas não seria útil que o comportamento de uns fosse generalizado ao resto da população – tal como o comportamento pouco cuidado de alguns automobilistas não deve ser generalizado a todos – nem que o comportamento de outros ciclistas seja moralmente avaliado de forma desajustada relativamente à necessidade de manter a segurança nas deslocações que fazemos.

Por fim, é uma verdade que é bastante delicada a questão de traçar os limites da moralidade, especialmente se ela não coincide com os limites da legalidade. Para resolver este conflito, seria útil adequar a lei à realidade emergente da adoção da bicicleta.

(Artigo publicado no jornal Notícias do Parque, Dezembro 2012)

15 thoughts on “Os utilizadores de bicicleta são moralmente incumpridores?”

    1. Concordando com o artigo há que ter em conta a realidade portuguesa.

      Os ciclistas estão a tentar ganhar a aceitação dos outros utentes da via pública. Terão de promover essa aceitação com o seu comportamento.

      As organizações ligadas à bicicleta terão de lançar campanhas, sensibilizar as autoridades etc. Muito deste trabalho está a ser feito outro não.

      Exemplo do que me parece não estar a ser feito: sensibilizar as autoridades para lançarem campanhas de formação dos peões que utilizam as ciclovias e dos ciclistas que as utilizam como pistas de corrida.

      1. Na Alemanha, cidade de Freiburg onde vivi, as ciclovias quando não existe espaço nas estradas, é na metade de fora dos passeios, com um traço contínuo a separar os peões, e nunca vi em 6 meses conflito entre uns e outros. É de facto urgente educar tantos uns como outros.

  1. talvez seja possivel que os condutores portugueses não sejam tambem respeitadores do espaço, segurança e direito dos ciclistas no geral, existirão sempre pessoas moralmente incumprimdoras em ambos os veiculos, automoveis e velocipedes, a mim parece-me mais que a balança tomba para o lado dos automobilistas que conduzem na verdade, de uma forma geral com um comportamento muito mais agressivo e perigoso tanto para peões como para ciclistas e outros automobilistas, dificilmente alguem morre por ser atropelado por um ciclista urbano, as imoralidades cometidas ao volante de um automovel são muito mais frequentes e de uma gravidade incalculavelmente maior, este artigo cheira-me a dor de cotovelo, sugiro que o Sr. tire o cu tremido dos bancos aquecidos e vá pedalar, para seu bem e de todos 😉 obg pela atençao

    1. Explanou o seu ponto de vista que se resume, a meu ver, da seguine
      te forma:
      “Não contexto os seus argumentos mas os automobilistas são piores”.
      O meu comentário ao seu comentário é o seguinte:
      queremos contribuir para a melhoria das coisas ou vamos defender o que está mal feito porque outros fazem pior?

      Penso que temos que mudar de atitude!

      Quanto à referência ao “cu” é uma questão de educação.
      Só se dá o que se tem!

  2. Pingback: Anónimo
  3. Se passo sinais vermelhos, e não desmonto para passar na passadeira, se deixo a bicicleta no passeio, se vou na faixa do bus (tudo ilegalidades segundo o CE) é porque este governo não me deu as infraestruturas necessárias para o não fazer! ao contrario dos meus descontos que religiosamente no fim do mês são cumpridos, matematicamente falando, há sinais vermelhos inevitáveis e a espera é obrigatória, junto ao metro do campo grande aquela transição da ciclovia infernal, novamente ao pé das faculdades em entrecampos outra transição infernal, onde abre o sinal verde para a bicicleta para atravessar e estar vermelho do outro lado e ter de parar, no campo pequeno, no Saldanha, na Av. Fontes Pereira de Melo, a confusão do Marquês, a Av. da Liberdade com todas aquelas transversais, 4 para ser mais preciso, o GPS marca 10 minutos parado todos os dias, ou seja 3650 minutos por ano, 60 horas, resumindo, num ano eu passo parado em sinais vermelhos, 2 dias e 12 horas da minha vida!!!! e confesso, passo muitos sinais vermelhos, não ao estilo alleycat mas com as devidas precauções, lamento se dou mau nome ao ciclismo urbano, mas tem de ser.

  4. Reafirmo que os males para a insegurança rodoviária nunca podem vir daqueles que andam a 20km/h com uma massa total de 90 kg, mas tão-somente daqueles que andam com uma tonelada de ferro nas mãos a 70km/h. Sim, um carro de uma tonelada a 70km/h tem uma energia cinética 136 vezes superior a uma bicicleta e condutor com massa total de 90kg a 20km/h!

    1. Continuamos a discutir o que não deve ser discutido (nesta questão que é o artigo que dá origem a estes comentários).
      Só falta alguém dizer que anda a assassinar pessoas porque o governo não dá isto e aquilo.

      Para que não haja dúvidas sou automobilista quando chove, ando de mota quando o tempo é bom e a distância é grande e sou ciclista no resto do tempo. O meu filho anda de bicicleta e o meu neto também.

      Deixei de participar na massa crítica porque o apelo ao incumprimento e a sobranceria dos organizadores relativamente aos outros utentes da via pública não se coaduna com comportamentos civilizados.

      Quero ser respeitado como ciclista e quero que os ciclistas respeitem os demais cidadãos. Como ciclista, na beira Tejo, fico incomodado quando os peões andam na ciclovia em vez de utilizarem a sua via mas também com os ciclistas que acham que a ciclovia é uma pista de corridas.

      Posto isto reafirmo o que disse nos comentários anteriores e acrescento.

      Há países onde o peão não passa o sinal vermelho (mesmo sem trânsito), não atravessa fora das passadeiras. Passei em Novembro por Macau onde toda a gente andava no meio da rua e, agora, só passam nas passadeiras e só ao sinal verde.

      Comentário: até numa cidade do 3º mundo, Macau, os cidadãos se civilizam. Alguns de nós, em Portugal, insistimos em não nos civilizarmos!

      E já agora devo dizer que essa de as regras de trânsito existirem por causa da segurança deve ser mais uma das criatividades portuguesas.

      1. Precisa de rever o seu conceito de urbe caro Rui. Durante 7000 anos as cidades não tiveram carros, a rua e a estrada eram a continuação da nossa casa, que estimávamos e mantinhamos limpas, onde os filhos e os netos brincavam e os animais vagavam. Um objeto de ferro de uma tonelada que circule a 70km/h, independentemente do que disser, é um perigo urbano.

        O caro Rui pode fazer os melhores manuais de utilização de uma pistola, pode cumprir rigorosamente todas as suas normas de segurança, pode punir severamente quem não as cumprir, mas não deixa de ser uma arma. E para evitar fatalidades do uso de armas de fogo, por exemplo, não se consegue com o melhor e mais rigoroso cumprimento das regras de segurança da sua utilização, mas com o menor uso ou mesmo abolição!

        Cumprimentos

        1. Demorei a responder porque não gosto de “filosofar” sem bases. Assim fui pesquisar o assunto e conclui que na origem das regras de trânsito estiveram questões de segurança.

          Havia que resolver o “conflito” entre automóveis e veículos de tracção animal (cavalos) dum ponto de vista de segurança.

          O seu a seu dono: neste ponto tem razão.

          As primeiras leis são de 1861 e limitavam a velocidade a 16Km/h, reduzida para 3Km/m em 1865 e aumentada para 22Km/h em 1896.

          Mas continuo a dizer: temos de cumprir para podermos exigir que os outros cumpram.

  5. Só vim deixar os meus 2 cêntimos. Se é verdade que há 7000 anos não havia regras de trânsito, também é verdade que agora existem, assim como agora andamos calçados também temos carros, motos, autocarros, etc…que nesse tempo não havia. Chama-se evolução, essa coisa.
    Uma bicicleta a andar normalmente dificilmente faz grande estrago é verdade, mas um ciclista ou um peão incumpridor podem muito bem ser os causadores(sem sequer se envolverem) de um grave acidente rodoviário.
    Ando a pé, ando de transportes, andava de moto(já as vendi), e andei muitos anos de bicicleta(com matrícula e licença emitida pela câmara de odivelas, era puto e tive de fazer um exame no qual me perguntaram coisas que nem a tirar a carta de ligeiros perguntaram).
    As regras existem são para ser respeitadas, seja a pé, seja de carro, seja de que transporte for, e digo mais, se fosse polícia passava os dias a multar os peões que passam 10 metros ao lado da passadeira por preguiça.
    Posto isto, este post é tendencioso e como tal não vou discutir mais este assunto.

    1. As regras existem, porque surgiram problemas inerentes à massiva utilização de automóveis (essencialmente a partir de 1930), assim como existem regras internacionais sobre armas químicas, porque elas se desenvolveram. O facto de haverem regras sobre o quer que seja, não implica que o que está subjacente seja moralmente aceitável. A máfia, por exemplo, tem muitas regras!

      Para se ser cidadão de um país, é uma obrigação legal ter que saber as leis desse país; e não sabe-las, não desculpabiliza a ação perante uma força policial ou um tribunal. Os peões também têm que saber as regras de trânsito, assim como o caro Vasco deveria saber o código do IRS, o código do IVA ou o código penal. Mas se não souber, não há de vir muito mal ao mundo. Já se todavia um automobilista desconhecer a sinalética viária, pode matar outras pessoas. Não queira comparar agentes, cujas ações imprudentes têm consequências drasticamente diferentes.

      O caro Vasco, enquanto peão, pode ir a atravessar a rua; um autocarro de crianças para não o atropelar, desvia-se de si e vai por uma ribanceira abaixo e morrem 40 criancinhas. Como é? Não seria melhor ter seguro? Não seria melhor ser obrigado a fazer exame de peão? Mas a pergunta pertinente: e qual a probabilidade de tal acontecer? Veja estatísticas da ANSR por exemplo e tem a resposta!

      A associação entre evolução e automobilismo massivo, foi uma campanha muito usada pela indústria automóvel, para levar as pessoas a perder a posse do espaço público. Evolução não é a perda de qualidade de vida, isso é retrocesso. As duas grandes guerras trouxeram muitas evoluções tecnológicas ao mundo, mas um retrocesso civilizacional de milhares de anos!

Leave a Reply to Rui AmaralCancel reply